quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Poemas e analise

Na Mão de Deus

Na mão de Deus, na sua mão direita, 
Descansou afinal meu coração. 
Do palácio encantado da Ilusão 
Desci a passo e passo a escada estreita. 

Como as flores mortais, com que se enfeita 
A ignorância infantil, despojo vão, 
Depois do Ideal e da Paixão 
A forma transitória e imperfeita. 

Como criança, em lôbrega jornada, 
Que a mãe leva ao colo agasalhada 
E atravessa, sorrindo vagamente, 

Selvas, mares, areias do deserto... 
Dorme o teu sono, coração liberto, 
Dorme na mão de Deus eternamente! 

Antero de Quental, in "Sonetos" 

Enviando «Na mão de Deus», desde Vila do Conde, a um amigo, escrevia-lhe Antero: «O meu pessimismo tem-se desvanecido com esta vida contemplativa no meio da boa natureza». Com o presente poema convém confrontar as seguintes palavras, que são de outra carta: «a nossa vida… verdadeiramente é só a vida da nossa alma, do misterioso e sublime eu que somos no fundo: ora esse Eu ou essa alma tem a sua esfera na região do impessoal: o seu mundo é o da abnegação, da pureza, da paciência e do contentamento: na renúncia do indivíduo natural e de tudo quanto o limita, algema e obscurece é que consiste a sua misteriosa individualidade». É esta renúncia que transluz dos versos:
Depus do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita;
porém, o conjunto do soneto não se harmoniza com a primeira parte do citado trecho, muito mais luminosa do que ele é: e para justificar que se classifique o poema como de evasão basta notar que o coração, aí, vai para a mão de Deus, é verdade ‑ mas para nela dormir eternamente.
          

Evolução

Fui rocha em tempo, e fui no mundo antigo 
tronco ou ramo na incógnita floresta... 
Onda, espumei, quebrando-me na aresta 
Do granito, antiquíssimo inimigo... 

Rugi, fera talvez, buscando abrigo 
Na caverna que ensombra urze e giesta; 
O, monstro primitivo, ergui a testa 
No limoso paúl, glauco pascigo... 

Hoje sou homem, e na sombra enorme 
Vejo, a meus pés, a escada multiforme, 
Que desce, em espirais, da imensidade... 

Interrogo o infinito e às vezes choro... 
Mas estendendo as mãos no vácuo, adoro 
E aspiro unicamente à liberdade. 

Antero de Quental, in "Sonetos" 

O Absoluto hegelianismo deste soneto justifica-se pela explicação da dialética do ser ‑ o que foi («Fui rocha», «fui…/Tronco ou ramo na incógnita floresta») e o que é («Hoje sou homem») ‑ concentrada na aspiração da liberdade («E aspiro a única liberdade»). O tipo de evolução aqui descrito segue primeiro o princípio biológico de uma passagem material de espécie para espécie ‑ o ter sido rocha para o ser homem ‑ sem que se perca a relação substancial que as liga. As quadras e o primeiro terceto dão conta deste evolucionismo biológico, fechando o soneto com três versos de profunda inspiração hegeliana. Para António Sérgio, o conceito de liberdade aqui apresentado inspira-se no sistema de Hegel apenas por afirmar a «liberdade como mola do mundo espiritual, como impulso e finalidade do Universo»), porém deve acrescentar-se que o principal termo de aproximação é a liberdade do querer ‑ Antero diz adoro e aspiro ‑ tal como em Hegel o principal fim da vontade humana é atuar livremente.

Cf. a temática deste soneto com a doutrina expressa pelo filósofo nas Tendências Gerais da Filosofia na 2.ª metade do Século XIX «Uma ideia instintiva lateja surdamente, como uma pulsação de vida, nesse universo que a ciência mede e pesa, mas não explica: é a aspiração profunda de liberdade, que abala as moles estelares como agita cada uma das suas moléculas, que anima o protoplasma indeciso como dirige a vontade dos seres conscientes. É esse fim soberano, realizado em esferas cada vez mais largas, que torna efetiva a evolução das coisas.» ‑ Cf. ainda a ode «Panteísmo», já estudada, e o que já referimos sobre a filosofia de Hegel.

Recorde-se ainda que a ideia de evolução domina a renovação ideológica da segunda metade do século XIX: a evolução é um dos aspetos da crença no progresso e relaciona-se com a publicação da obra de Darwin, Origem das Espécies (1859), segundo a qual o homem, dotado de consciência, derivara de formas primitivas e elementares. (Cf. versos 1-8).

Notar o contraste entre o passado, isto é, as várias fases da evolução (cf. a escada multiforme) e o presente, termo da evolução, espiritualização da matéria (vs. 9-14): «Fui rocha em tempo, fui... /Hoje sou homem.»

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