quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Caminho

Caminho



Tenho sonhos cruéis; n'alma doente 
Sinto um vago receio prematuro. 
Vou a medo na aresta do futuro, 
Embebido em saudades do presente... 
Saudades desta dor que em vão procuro 
Do peito afugentar bem rudemente, 
Devendo, ao desmaiar sobre o poente, 
Cobrir-me o coração dum véu escuro!... 
Porque a dor, esta falta d_harmonia, 
Toda a luz desgrenhada que alumia 
As almas doidamente, o céu d'agora, 
Sem ela o coração é quase nada: 
Um sol onde expirasse a madrugada, 
Porque é só madrugada quando chora. 

II 

Encontraste-me um dia no caminho 
Em procura de quê, nem eu o sei. 
d Bom dia, companheiro, te saudei, 
Que a jornada é maior indo sozinho 
É longe, é muito longe, há muito espinho! 
Paraste a repousar, eu descansei... 
Na venda em que poisaste, onde poisei, 
Bebemos cada um do mesmo vinho. 
É no monte escabroso, solitário. 
Corta os pés como a rocha dum calvário, 
E queima como a areia!... Foi no entanto 
Que choramos a dor de cada um... 
E o vinho em que choraste era comum: 
Tivemos que beber do mesmo pranto. 

III 

Fez-nos bem, muito bem, esta demora: 
Enrijou a coragem fatigada... 
Eis os nossos bordões da caminhada, 
Vai já rompendo o sol: vamos embora. 
Este vinho, mais virgem do que a aurora, 
Tão virgem não o temos na jornada... 
Enchamos as cabaças: pela estrada, 
Daqui inda este néctar avigora!... 
Cada um por seu lado!... Eu vou sozinho, 
Eu quero arrostar só todo o caminho, 
Eu posso resistir à grande calma!... 
Deixai-me chorar mais e beber mais, 
Perseguir doidamente os meus ideais, 
E ter fé e sonhar d encher a alma. 

Camilo Pessanha, in 'Clepsidra' 

Resultado de imagem para caminho

Analise do "Caminho"
Em “Caminho”, soneto simbolista de Camilo Pessanha, o subjetivismo sugestivo se apresenta em cada parágrafo. O aprisionamento ao passado e à saudade trabalha com as emoções.
A ausência de consonância entre as palavras e o ilogismo põe o leitor a pensar e o incentivam a buscar o lógico para cada verso. O jogo entre o presente e o futuro é um dos pontos de maior evidência no texto, e faz a ponte de um parágrafo a outro, o que se comprova no término do penúltimo parágrafo em “céu d’agora” e no verso “expirasse a madrugada” que praticamente encerra o soneto.
Nota-se ainda que o “eu-lírico” não se separa da saudade por estar agarrado ao presente, e o poeta, de alma doente, viaja ao futuro por um caminho cheio de arestas, mas sabendo que sem a dor, todas as suas ambições humanas morreriam.
Caminho nos mostra uma trajectória de aflição, na tentativa de afugentar a dor e a morte que se fundem com o luto, situações negativas e de sofrimento.
Ao passear pelo texto, encontramos evidências do nosso medo com relação ao futuro e a impressão de que ninguém pode se livrar da saudade sem se desligar do presente.
A linguagem metafórica se confunde com as palavras simples e deixa a marca do simbolismo impressa no decadentismo, no vago, nas emoções, nas interrupções virguladas, onde o poema retrata o poeta (como se narrador), não o escritor.
Em meio ao ilógico, a harmonia só se apresenta na sonoridade das palavras que, pouco a pouco, se transformam em rimas irregulares que compõem este soneto de quatro estrofes formado por dois quartetos e dois tercetos. Também obedece ao esquema ABBA, que é transparente na primeira e na segunda estrofe.

Sem comentários:

Enviar um comentário