Caminho
I
Tenho sonhos cruéis; n'alma doente
Sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente...
Saudades desta dor que em vão procuro
Do peito afugentar bem rudemente,
Devendo, ao desmaiar sobre o poente,
Cobrir-me o coração dum véu escuro!...
Porque a dor, esta falta d_harmonia,
Toda a luz desgrenhada que alumia
As almas doidamente, o céu d'agora,
Sem ela o coração é quase nada:
Um sol onde expirasse a madrugada,
Porque é só madrugada quando chora.
II
Encontraste-me um dia no caminho
Em procura de quê, nem eu o sei.
d Bom dia, companheiro, te saudei,
Que a jornada é maior indo sozinho
É longe, é muito longe, há muito espinho!
Paraste a repousar, eu descansei...
Na venda em que poisaste, onde poisei,
Bebemos cada um do mesmo vinho.
É no monte escabroso, solitário.
Corta os pés como a rocha dum calvário,
E queima como a areia!... Foi no entanto
Que choramos a dor de cada um...
E o vinho em que choraste era comum:
Tivemos que beber do mesmo pranto.
III
Fez-nos bem, muito bem, esta demora:
Enrijou a coragem fatigada...
Eis os nossos bordões da caminhada,
Vai já rompendo o sol: vamos embora.
Este vinho, mais virgem do que a aurora,
Tão virgem não o temos na jornada...
Enchamos as cabaças: pela estrada,
Daqui inda este néctar avigora!...
Cada um por seu lado!... Eu vou sozinho,
Eu quero arrostar só todo o caminho,
Eu posso resistir à grande calma!...
Deixai-me chorar mais e beber mais,
Perseguir doidamente os meus ideais,
E ter fé e sonhar d encher a alma.
Tenho sonhos cruéis; n'alma doente
Sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente...
Saudades desta dor que em vão procuro
Do peito afugentar bem rudemente,
Devendo, ao desmaiar sobre o poente,
Cobrir-me o coração dum véu escuro!...
Porque a dor, esta falta d_harmonia,
Toda a luz desgrenhada que alumia
As almas doidamente, o céu d'agora,
Sem ela o coração é quase nada:
Um sol onde expirasse a madrugada,
Porque é só madrugada quando chora.
II
Encontraste-me um dia no caminho
Em procura de quê, nem eu o sei.
d Bom dia, companheiro, te saudei,
Que a jornada é maior indo sozinho
É longe, é muito longe, há muito espinho!
Paraste a repousar, eu descansei...
Na venda em que poisaste, onde poisei,
Bebemos cada um do mesmo vinho.
É no monte escabroso, solitário.
Corta os pés como a rocha dum calvário,
E queima como a areia!... Foi no entanto
Que choramos a dor de cada um...
E o vinho em que choraste era comum:
Tivemos que beber do mesmo pranto.
III
Fez-nos bem, muito bem, esta demora:
Enrijou a coragem fatigada...
Eis os nossos bordões da caminhada,
Vai já rompendo o sol: vamos embora.
Este vinho, mais virgem do que a aurora,
Tão virgem não o temos na jornada...
Enchamos as cabaças: pela estrada,
Daqui inda este néctar avigora!...
Cada um por seu lado!... Eu vou sozinho,
Eu quero arrostar só todo o caminho,
Eu posso resistir à grande calma!...
Deixai-me chorar mais e beber mais,
Perseguir doidamente os meus ideais,
E ter fé e sonhar d encher a alma.
Camilo Pessanha, in 'Clepsidra'
Analise do "Caminho"
Em “Caminho”, soneto simbolista de Camilo Pessanha, o subjetivismo sugestivo se apresenta em cada parágrafo. O aprisionamento ao passado e à saudade trabalha com as emoções.
A ausência de consonância entre as palavras e o ilogismo põe o leitor a pensar e o incentivam a buscar o lógico para cada verso. O jogo entre o presente e o futuro é um dos pontos de maior evidência no texto, e faz a ponte de um parágrafo a outro, o que se comprova no término do penúltimo parágrafo em “céu d’agora” e no verso “expirasse a madrugada” que praticamente encerra o soneto.
Nota-se ainda que o “eu-lírico” não se separa da saudade por estar agarrado ao presente, e o poeta, de alma doente, viaja ao futuro por um caminho cheio de arestas, mas sabendo que sem a dor, todas as suas ambições humanas morreriam.
Caminho nos mostra uma trajectória de aflição, na tentativa de afugentar a dor e a morte que se fundem com o luto, situações negativas e de sofrimento.
Ao passear pelo texto, encontramos evidências do nosso medo com relação ao futuro e a impressão de que ninguém pode se livrar da saudade sem se desligar do presente.
A linguagem metafórica se confunde com as palavras simples e deixa a marca do simbolismo impressa no decadentismo, no vago, nas emoções, nas interrupções virguladas, onde o poema retrata o poeta (como se narrador), não o escritor.
Em meio ao ilógico, a harmonia só se apresenta na sonoridade das palavras que, pouco a pouco, se transformam em rimas irregulares que compõem este soneto de quatro estrofes formado por dois quartetos e dois tercetos. Também obedece ao esquema ABBA, que é transparente na primeira e na segunda estrofe.
Sem comentários:
Enviar um comentário